Impotência


Quando nada mais parece nos tocar, nenhuma música, nenhum livro, nenhuma conversa, fazemos seguidas tentativas (frustradas) para expressar alguma ideia interessante, mas, então, finalmente percebemos que a nossa vontade de doar algo ao mundo está, momentaneamente, entravada. A partir disso, podemos até imaginar que a roda da criação parou de girar em nós – mas isto é, certamente, o nosso maior engano. Os momentos de impotência criativa nos ensinam, no mínimo, a compreender o que constitui o cotidiano dos indivíduos que estão capturados pela organização moral: como eles estão impedidos de evoluir conforme os seus mais sinceros desejos, são alvos fáceis da indústria do passatempo. A “felicidade dos acomodados” (uma espécie de alegria derivada do “tapinha nas costas”) impede que a impotência criativa seja, de fato, experimentada – ela é covardemente escondida pelos brinquedos industriais que são produzidos para os sofredores da realidade... Tagarelar, por exemplo, ainda é uma das vias mais fáceis para distrair-se de si mesmo (para isso, uma boa lista de “amigos” pode ser bastante útil). Agir como todos devem agir nos mantém distantes do conhecimento da nossa singularidade de ruminar, de escutar as múltiplas vozes interiores que vão, gradualmente, emergindo em nós, vozes que desejam conduzir a nossa existência, acompanhadas de cores, sons, sentimentos – assim a nossa consciência é enriquecida pela força da vida que nos impulsiona. Sem dúvida, existem coisas que nos tocam, que nos mobilizam, mas, nos momentos de crise, elas parecem passar por nós sem nos deixar nada, como se nos obrigasse a uma pausa e a um desvio necessário para que seja possível, enfim, alguma experiência sem falsos temores, longe de questões do tipo “onde é que isso vai dar?”, como saída necessária para que possamos retornar ao nosso querer. Outrora, o sentimento de impotência artística poderia nos levar a agir como os massificados, isto é, desejar as distrações enlatadas e fazer a nossa própria existência simplesmente passar, de maneira entorpecida. Mas, depois de tantas mudanças e já com algum respiro de vida autônoma, não queremos mais fugir dos momentos de crise, pois na verdade já passamos por eles algumas vezes e sabemos que a impotência adormece quando a nossa natureza volta, regenerada, a fluir para o mundo através das nossas obras. É preciso ser grande para não se opor aos momentos de crise...

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

Comentários

Zatonio Lahud disse…
Lindo e comovente texto. Me emocionou!
Gracias!!! Um presente no momento certo. bj
Zeneide