Escrever


Desejar que as palavras sejam capazes de expressar algo das vivências interiores que as engendraram é, podemos afirmar, a mais difícil tarefa de quem escreve, ou melhor, de quem tem uma relação artística com a escrita. Um escritor assim consegue perceber importantes mudanças no seu antigo hábito, torna-se consciente do amadurecimento do seu pensamento, pois à medida que sua escrita continua a lhe servir como demonstração de que o ato de escrever carrega inevitavelmente as suas experiências com o corpo, ele necessariamente adquire a grande sabedoria de que somente é possível escrever de maneira honesta quando se vive honestamente com a vida. O escritor afirmativo passa a expressar as ideias que jamais nasceriam se, ao contrário, ele estivesse limitado à mesmice, às ilusões de “verdade”, “início” e “conclusão” que a linguagem gregária poderia levá-lo a acreditar. Portanto, por priorizar uma relação artística com a escrita, faz com que o uso gregário das palavras esteja reservado apenas para o que lhe convém. O silêncio e a solidão, e não a tagarelice, são os melhores meios para fazer da escrita a testemunha mais próxima da sua evolução criadora. Dito de outro modo: o escritor-artista deseja comunicar aquilo que é comum a todos, ou seja, a capacidade que cada um tem para expressar, mesmo de modo limitado, a sua multiplicidade de afetos. A força dos seus escritos quer nos dizer isto: “Sinta, pegue isso, leve-o para mais longe do seu jeito...”. Um ensino que tivesse como fio condutor o estímulo à capacidade criativa dos indivíduos quando se lê ou se escreve algo, isto é, um ensino que priorizasse a relação com a leitura e com a escrita como maneiras de evoluir, certamente não teria nada a ver com o ensino atual, cujo estímulo à leitura e à escrita tem objetivos bem claros: a instrução máxima dos indivíduos como garantia da manutenção das “verdades” vigentes, como processo contínuo da reprodução dos funcionários do poder, da proliferação dos juízes da vida. Diante disso, torna-se compreensível que a escrita honesta seja, de fato, uma raridade no mundo dominado pela comunicação global. Quem disponibiliza suas mãos para se limitar a escrever algo que não é vivido, quem escreve porque alguém lhe ordena escrever, quem se serve das palavras para disseminar os afetos de ódio e de vingança, quem escreve para “ser alguém” na vida, quem escreve apenas por causa do salário, comete o maior crime contra a sua própria vida, que é esmagar as suas vivências interiores em troca de um quinhão do lucro dos “bem-sucedidos”. O escritor-comum é apenas o produto de um receio imaginário de perceber a si mesmo como caos desejante e, assim, protege-se exageradamente na noção de “ser”: “Eis, meus caros, um 'grande' escritor!”. Limita-se a escrever para um público que anseia por palavras que alimentam suas esperanças de eliminar os “males” da existência, ansiosos por receitas que sejam facilmente aplicadas ao seu cotidiano. Nada mais explícito sobre isso do que os livros dos “gurus da felicidade” (esses sacerdotes modernos...) e, sem dúvida, também os textos jornalísticos que derrubam e elegem políticos, que ditam padrões de comportamento, que reforçam a “verdadeira” percepção da realidade, que dizem para todos o que “aconteceu”... – a era dos mass media é também a era da maior vulgarização do homem e, também, da maior tirania sobre a vida. Mas os grandes escritores redimem a escrita do seu excessivo uso gregário para comunicar a felicidade que sentem por se apropriarem das palavras conforme o seu desejo. Eles escrevem para tocar no coração de seus leitores, criando, desse modo, o seu público, e não para serem compreendidos por um público que se arrasta no mundo, sedento por “explicações” que servem para consolá-lo.

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

Comentários

Que delícia esse seu texto, por uma escrita sempre testemunha dos nossos nascimentos. Um beijo. Kely