Generosidade


Não há escolha para alguém ser generoso, porque trata-se de obedecer uma exigência que não é moral, mas sentida como a exigência mesma da vida. Certamente, quem é generoso se alegra com isso, mas sua alegria seria ainda maior se os homens percebessem imediatamente o que ele percebeu – mas, evidentemente, isso é impossível. Para que alguém perceba algo da imensidão, da exuberância que é fonte do que foi doado, quanto tempo, paciência, “receptividade ativa” são exigidos – para perceber a realidade de outro modo, isto é, na sua fonte, quanto esforço é preciso ter! Ora, se a gestação da obra demanda tempo, esforço, sentimentos e visões únicas, se ela aparece, finalmente, no mundo dos homens através de signos, como exigir que alguém a compreenda rápido demais? Não seria esse o destino comum dos grandes artistas, por exemplo? Eles vão deixando, ao longo do caminho, alimentos que poderão ser, um dia, recolhidos por alguns homens. Destes, há os que ainda têm dúvida quanto ao valor daquilo que recolheram, não sabem o que fazer com ele. Olham ao redor e se dão conta de que a maioria despreza aquilo que foi recolhido. Mas o generoso segue adiante, não pode ser detido por querer “esclarecer” o que doou, pois ele tem muito mais o que fazer – a vida segue adiante. Quem pode segui-lo, quem continua a sentir algo diferente diante da obra, continuará a segui-lo  – eis a força da arte que, assim como a filosofia, impulsiona os desejos de alguns humanos, geração após geração. Já os outros, que foram sutilmente movidos da sua inércia, não conseguirão ir mais além por algum tempo, talvez, até, por toda a sua existência. A vida cotidiana, os interesses mesquinhos, em suma, o domínio das prioridades pragmáticas adia as tarefas consideradas “sem urgência”... São, impiedosamente, engolidos pela banalidade. De algum modo, a generosidade de alguém os tocou, sem dúvida, caso contrário não teriam recolhido o alimento, nem sequer o teriam visto. Mas isso ainda é insuficiente, porque é somente o início de um longo trabalho para renascer – e para ser também, algum dia, generoso.

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

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