Hiperconectividade


É necessário que a sistematização confinante mantenha os indivíduos ocupados com muitas tarefas que, numa proporção considerável, são realmente desnecessárias, já que são organizadas por meio da proliferação de conexões que os entorpecem. A burocracia do excesso de tarefas é acompanhada do constante estímulo das conexões voluptuosas, do tipo “passou o efeito, eu quero de novo!”, que vão desde o prazer derivado dos lucros obtidos pelos investidores de Wall Street, até os que são oferecidos pela “indústria do reconhecimento”, fisgando as pessoas nos seus mais diversos níveis sociais. Grosso modo, a associação entre esses dois gêneros de conexão, a entorpecedora e a voluptuosa, serve para preservar o reino da estupidez – afinal de contas, esta é a lógica do trabalho irracional, com suas tarefas escravizantes e volúpias estupidificantes... Essa associação atingiu um grau elevadíssimo com as redes sociais da internet, cujo funcionamento permite um nível de conectividade como jamais houve e, igualmente, um desperdício de tempo e um culto ao narcisismo que são incomparáveis com outras épocas. O efeito disso é uma arrogância, intolerância e mesquinhez que fazem muitos sujeitos se tornarem reféns dos seus seguidores fanáticos – ao idolatrar, o seguidor não ajuda em absolutamente nada; pelo contrário, reforça ainda mais os delírios dos seus ídolos... Esse mecanismo de entorpecimento-volúpia, que é empregado pela sistematização confinante, serve, indubitavelmente, para que a ordem desse sistema antinatural não seja perturbada, pois antes mesmo que o desespero dos confinados faça explodir o cativeiro, suas conexões voluptuosas são incitadas de modo cada vez mais frequente, impedindo a saudável reconfiguração das suas tendências. Portanto, vivemos na época das hiperconexões entorpecedoras e voluptuosas que mantêm os indivíduos resignados em um cativeiro sensorial, temporal e mental. Em razão disso, é urgente o exercício da desconectividade seletiva para podermos respirar num outro ritmo – entretanto, é também essencial o exercício da conectividade desejante, cuja intensidade ocorre a partir de movimentos que nos levam para fora da sistematização confinante, ao menos temporariamente... Se esse sistema violento não cessa de reforçar a nossa individualidade mediante o mecanismo entorpecimento-volúpia-vaidade, podemos nos defender disso ao estimularmos a nossa desindividualidade a partir do mecanismo desejo-volúpia-resistência, permitindo, finalmente, o engendramento de um outro mecanismo, com mudança de natureza, que é o impulso-certeza... Podemos resumir isso, talvez, numa fórmula: da resistência alegre passamos à certeza alegre... Com a conectividade que é intensa conseguimos nos manter fortes e corajosos, porque nossas tendências desejantes são conectantes e não hiperconectantes; por outro lado, com a hiperconectividade entorpecedora e voluptuosa nos mantemos frágeis e covardes – imaginamos que não temos limites, que podemos saber de tudo e possuir qualquer coisa que temos vontade. A hiperconectividade é um meio da sistematização confinante para impedir de nos conectarmos com o que nos desorganiza, nos fortalece, nos faz confiar na vida, mesmo, e sobretudo, quando algo nos causa vertigem... A pergunta “Onde há intensidade?” pode ser compreendida desse modo: “Quais as conexões que nos fortalecem e que podem nos levar à ação?”... Uma grande emissora de televisão apenas exerce o seu poder porque oferece o que as massas mais imploram, que são os prazeres em doses frequentes e previsíveis: como elas se submetem cotidianamente às hiperconexões entorpecedoras, a programação televisiva tem a função essencial de organizar as suas hiperconexões voluptuosas, preservando, assim, o poder sobre os seres estupidificados. Mas o poder de uma emissora de televisão é bastante frágil, bastaria não haver conexão com o que ela nos oferece, e sim com as coisas que nos intensificam, para que ela, enfim, deixasse de existir... Mas é por causa dessa sua fragilidade que esse fundamental componente do sistema dominante necessita, desesperadamente, estupidificar as massas todos os dias, para que a ordem geral não seja perturbada... Mas até quando esse mecanismo irá funcionar? Até quando as hiperconexões voluptuosas do “zapear” televisivo, ou então, dos likes das redes sociais, vão conseguir impedir a explosão dessa sociedade de excesso?

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Aforismo publicado no livro Simplicidade Impessoal (2019), de Amauri Ferreira.

Comentários

empório disse…
Um tema muito pertinente e muito bem desenvolvido, Amauri.
Faço apenas um pequeno apontamento quanto a suposta "fragilidade do poder da emissora de televisão".
Temos no Brasil um oligopólio da comunicação. Quatro famílias detém praticamente o poder de definir a narrativa do país. À família Marinho é destinado um poder ainda maior. Ela é produtora do imaginário popular. Presente cotidianamente em praticamente todas as casas e não só nas casas, mas em todos os bares, butecos de beira de estrada, consultórios etc do país e, contando com, aí sim, a fragilidade do poder da crítica e do estabelecimentos dos filtros necessários da massa populacional do país, a população acaba por ser refém do ideário da emissora. Não é simples - ainda não é simples - esperar que o alívio da cotidianização da vida das pessoas não seja, depois de um dia de trabalho, ligar a televisão para ver a novela e o jornal que estimula o não pensamento. É mais ou menos assim: "não se preocupe. Você já fez o seu papel, trabalhando o dia inteiro. Não precisa pensar. Relaxe. Deixa que nós fazemos isso para você". A tarefa para mudar esse quadro é árduo. Não sei mais como, mas tem que ser feito.

Sobre a mídia já escrevi bastante lá no empório. Aliás, peço-lhe permissão para compartilhar este texto.
Abç
César.